quarta-feira, 21 de maio de 2014

Conto: Vai descer

Era tarde, lá depois de meia noite, que Bruno subia a bordo do último ônibus que o levaria da faculdade para a cidade. Havia estudado até tarde por conta de um projeto que se envolveu em seu mestrado, estava desgastado, mentalmente exausto e fisicamente moído. E emocionalmente? Indiferente. Não se dava ao luxo de ter emoções, nem paixões, nem vontade, nem medo. Já recebera vários prêmios devido a sua inteligência desde cedo, é tri campeão regional de xadrez, já ganhou maratonas de matemática e de física. Tinha uma mente impecável, ou era o que parecia ser. Sua genialidade sempre foi acompanhada de elogios e seriedade, ele sabia de sua condição e se empenhava em melhorá-la, aperfeiçoá-la.
Ao passar pelo cobrador, nosso protagonista observa alguém o olhando de longe, parecia uma garota com um vestido branco. Ignorando o que acabava de ver, ele escolhe um lugar vago na janela e senta. Sentado, parado, automático. Esse era o estado dele, entrava em piloto automático, uma espécie de hipnose, delirando. Enquanto seu corpo seguia imóvel, sua mente o inundava com coisas de casa, da família e de sua vida amorosa. Pensamentos esses que vinham com muita culpa e repreensão por não fazerem parte de sua ambição, de seus objetivos. "Foque no que importa" pensava ele sempre, negava a si o pensar sobre o próprio ser, o próprio viver, mas essa rigidez parecia não ser eficaz devido ao estado de esgotamento que ele se encontrava.
Enquanto o tempo passava, o cenário mudava; acabava de sair de um bairro e passar por outro. Sua cabeça balançava harmoniosamente com o coletivo conforme ele avançava por ruas esburacadas em um humilde bairro. Enquanto sua cabeça pairava pelo ar, sua mente vagava, abstrata, incoerente, indecifrável. Seguiu assim até a imagem daquela mesma garota do ônibus aparecer, não dentro, mas fora em uma rua escura. Aquilo sim o tirou daquele estado zumbificado, pois logo após ver tal coisa, ele procurou com a cabeça e não a achou. Estava assustado, pois o vestido daquela garota era igual ao vestido de sua irmã mais velha usava quando ele era pequeno, por volta dos sete anos. Então repreendeu-se pelo fato de ter medo e de ocupar sua mente com coisas inúteis.
Seguiu indiferente pela viagem. Distraído como ficou, esqueceu de sinalizar quando chegou o ponto que desceria, então ele acabou descendo um pouco mais longe de sua casa. E tudo parecia tremer um pouco.
Desceu e seguiu em direção a sua casa por aquela avenida quieta e fria. Sua indiferença o corroía por dentro, de certa forma. As vezes, o ignorar já é um sentir, é um estado. Conforme segue pelas ruas, dobrando esquinas, ele se depara com a figura da menina lá na outra esquina, encarando e segurando um brinquedo nas mãos, uma boneca talvez. A figura da garota era pálida, era impossível dizer a cor de seus olhos e seus lisos e volumosos cabelos castanhos caíam pelos ombros e chegavam até a cintura. Ele travou de medo, sabia que aquilo não era natural, então tomou um caminho alternativo. Acabou dando passando em algumas ruas bem sinistras em seu bairro, então se esqueceu da garota por uns instantes, pois o medo de ser assaltado era maior. Estando perto de sua casa, olhou para trás e viu a garota um pouco longe, andando em sua reta. Tentando controlar o desespero, ele corre em direção a sua casa. O medo quase o possuía por completo, e como era noite, não havia ninguém na rua para o acudir caso algo acontecesse. Chegando em casa, ele olha para os lados e para trás, e acaba não vendo sinal da garota, sumiu. Imediatamente, ele abre o portão e, em alguns segundos, já estava dentro de sua casa com as portas trancadas. "Estou a salvo", pensou o coitado.
Tranquilo, Bruno decide subir pelas escadas e, quando foi destrancar a porta de seu quarto, escutou alguém logo onde acabou de passar. Começando a sentir aquela presença, olhou e viu a silhueta de uma criança no escuro, o qual engoliu a figura. "Não tem nada ali" dizia a si mesmo, tentando controlar o medo, enquanto tentava encaixar a chave na fechadura, então tudo pareceu tremer um pouco.
"Coisa da minha cabeça" pensava. Entrando no quarto, ele acaba se desfazendo de suas roupas enquanto caminha em direção a sua cama. Aquela hora invejada durante o dia todo chega: a hora do descanso. Ele deita, aliviando cada músculo do corpo, esticando o cérebro e cobrindo a mente. Por duas horas ele mergulhou no abismo, no limbo, quando algo o puxa para a superfície, voltando para o corpo em um respirar forte. Bruno acorda de seu sono procurando o que lhe agarrara na perna, até que ele acaba sentindo um pequeno animal peludo: era o gato da namorada. Em um ato de raiva, ele pega o bichano, se levanta e o chuta pra dentro do banheiro de sua suíte o tranca lá. "Preciso ir ao banheiro", pensou, e aquele gato deveria estar furioso, então decidiu vagar até o outro banheiro com aquele cansaço de dor que chegava até os ossos.
Vagando pelo corredor de sua casa, meio consciente, meio no abismo, encontra o banheiro. Chegando naquela sala porcelanada, ele ouve um grunhido, o qual o fez sentir um frio subindo-lhe a espinha. "É a criatura", pensou ele enquanto entrava no banheiro, espiando por todas as direções. Hesitou em sentar e acabou sentado para tatuar a porcelana. Enquanto permitia a ação do movimento peristáltico, vigiava a porta em prontidão. Apenas saiu do trono quando sentiu que a leveza do corpo não ia mudar mais.
Saindo do banheiro, eis que ele ouve aquele mesmo grunhido e percebe que era seu estômago. Estava faminto, e agora ele sabia, o que agravou a sensação de vazio. E tudo parecia tremer um pouco.
Chegando na cozinha, ele abre e vasculha a geladeira por algo que poderia comer, então ele encontra, em meio às fitas cassete, uma fatia de pizza. Ele pega a pizza e, quando resolve dar aquela mordida, o gato de sua namorada pula e rouba a comida de suas mãos. Furioso, Bruno pega uma faca que estava na pia e persegue o gato, que teve fim ao se encurralar no banheiro.
Após abater o animal, Bruno sai do banheiro e vai em direção a cozinha ainda com a faca na mão. Chegando lá, ele encontra com aquela garota que o perseguia e, ainda possesso da raiva que o gato proporcionara, decide dar fim nela, descendo a faca em direção dela várias e várias vezes.
-- Pare!! -- exclamava a garota.
Quando Bruno ouve a voz dela, ele para de esfaqueá-la, se afasta dela e entra em choque. Aquela voz havia tocado em seu âmago, feito seu estômago se contorcer e forçado nó cego em sua garganta. Ficou imóvel, aterrorizado, pois aquela era a voz dele de quando ele era garoto. Ele costumava vestir alguns vestidos da irmã quando ele era mais novo, mas era algo que só ele sabia. Ainda paralisado, a garota calmamente se aproxima, descansa a mão em seu ombro esquerdo e diz:
-- Ei, você perdeu o ponto -- disse ela usando um outro timbre de voz. A confusão de Bruno ficou estampada em sua cara. "Ponto? Do que ela está falando?" perguntava ele dentro de sua cabeça, então ela o sacode e fala novamente.
-- Cara, você perdeu o ponto ali ó, acorda.
Então ele acordou lá, sentado, no ônibus.
A garota que sentava atrás dele o acordou, pois eles se conheciam e ela percebeu que ele passou do ponto.
Então Bruno acabou descendo um pouco mais longe de sua casa, pois havia perdido o ponto.

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