domingo, 25 de maio de 2014

Conto: A digito cognoscitur leo

"Difícil encontrar essa pessoa, não sei se já a conheci, não sei se já passou. Tenho uma facilidade tenebrosa de entender as pessoas, ver seus pontos de vistas e até sentir o que elas fingem não sentir. Consigo vasculhar seus olhos, entrar em sua pele, sentir sua dor, e até tentar entender seu modo de pensar. O problema não é esse, mas sim a falta de reciproquidade nisso, algo tão grave que me fez apelar ao neologismo. Ninguém parece entender muitas de minhas neuras e irracionais razões e decisões, de que consigo expressar melhor o sentimento que aflige minh'alma através de palavras em papel, de que não sou tão racional quanto pareço, de que costumo observar as árvores e suas folhas conforme o vento sopra, encontrando paz em momentos como este e aquele, sendo que, enquanto este me faz organizar e jogar pensamentos fora, aquele expressa e me externa, aliviando pressões sentimentais e me deixando, também, em paz.
Olha que nem é por tentar, que culpa tenho se me desinteresso tão fácil por muitas pessoas? Amigos eu tenho, poucos mas os melhores. O problema era aquele mesmo, sempre foi aquele, de não encontrar alguém com a mesma loucura que tenho, ou talvez tenha encontrado e a desprezado, afinal, não é difícil que pessoas semelhantes a mim sejam estranhas e até mais loucas do que eu, pois tenho uma tendência ao caos, mesmo que eu tenha um amor pela harmonia, o que muitos confundem com indiferença ou até mesmo irracionalidade.
Me tornei o que minha família sempre quis: engenheiro mecânico. Tenho muitas especializações administrativas, sou fluente em inglês e espanhol, além de estar aprendendo mandarim. Trabalho atualmente para uma multinacional, sou gerente de projetos no escritório de engenharia e já recebi vários prêmios por conta de meus projetos. Sei que eles estavam mais preocupados com o dinheiro que fiz a empresa economizar do que com meu talento, pois eu mesmo faço isso com meus subordinados, afinal, é protocolo de qualquer empresa de sucesso. Enfim, muitos diriam que sou um homem de sucesso, e não nego, obtive sucesso material, possuo o carro do ano, tenho uma casa enorme, obtive sucesso... pelo menos era isso que gostaria de acreditar.
— Por quê? — perguntou-me um amigo meu quando desabafei minha insatisfação uma vez. Estávamos bêbados em uma festa cheia e vazia, vasta e superficial. No calor do momento (e do álcool), acabei expondo sentimentos e pensamentos jamais conhecidos por mim. Será que, talvez, eu não conhecia a mim mesmo?
O motivo de minha insatisfação é que, recentemente, descobri que eu, ao longo dos trinta e três anos, não vivi sequer um ano de minha vida. Como alguém não vive por 33 anos e ainda permanece vivo? A resposta é simples e comum, fácil de se responder e fácil de se encontrar. Eu, como muita gente, não vivi minha vida, mas sim a vida dos outros; as projeções e desejos que minha família tiveram sobre mim que veio a vida, as projeções de meus pais e as fantasias de minhas tias que vieram a vida, não eu, nunca eu. Nunca quis fazer engenharia, sequer chefiar alguém. No meu emprego não consigo deixar minha marca, meu nome, minhas impressões. Lá eu sou apenas um código de barras, uma peça, um número. Eu quero deixar minha marca no mundo, quero viver a minha própria vida, a vida de Leônidas, não a de vocês, nunca a de vocês.
Família é algo bom, mas não pode sufocar, é como a água, essencial, porém letal em altas doses. Amo vocês, e é por isso que deixo esta carta.
Cansei de ser sozinho no mundo, não consegui encontrar aquela tal de alma gêmea, mas agora percebo como ainda não a encontrei. Não encontrei alguém porque estive fora de mim, pois minha alma partiu faz tempo, dizendo que não rolava mais conviver comigo. Bom, talvez ela volte quando souber que destranquei as portas para ela.
Enfim, sem mais delongas, a finalidade desta carta (não quero comunicar isso via e-mail) é avisar vocês, que são minha família, que estou partindo. Vendi minhas coisas, juntei algumas roupas, comprei aquela moto que sempre desejei secretamente, sim, aquela linda Harley Davidson que estava impressa naquele pôster que tinha em meu quarto, comprei ela e parti para as américas. Destino? O horizonte."

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